(Capítulo extraído do livro “Os Trabalhadores do Mar”, de Victor Hugo)
Às vezes, alta noite, Gilliatt abria os olhos e olhava para a sombra.
Sentia-se extremamente comovido.
Olhar aberto sobre trevas. Situação lúgubre; ansiedade.
Existe a pressão da sombra.
Inexprimível teto de tênebras; alta obscuridade sem mergulhador
possível; luz mesclada à obscuridade, mas uma luz vencida
e sombria; claridade reduzida a pó; é semente? É cinza?
Milhões de fachos, claridade nula; vasta ignição que
não diz o seu segredo, uma difusão de fogo em poeira que parece
um bando de faíscas paradas, a desordem do turbilhão e a imobilidade
do sepulcro, o problema oferecendo uma abertura de precipício, o
enigma desvendando e escondendo a sua face, o infinito mascarado com a escuridão,
eis a noite. Pesa no homem esta superposição.
Esse amálgama de todos os mistérios a um tempo, do mistério
cósmico e do mistério fatal, abate a cabeça humana.
A pressão da sombra atua em sentido inverso nas diferentes espécies
de almas. O homem, diante da noite, reconhece-se incompleto. Vê a
obscuridade e sente a enfermidade. O céu negro é o homem cego.
Entretanto, com a noite, o homem abate-se, ajoelha-se, prosterna-se, roja-se,
arrasta-se para um buraco, ou procura asas. Quase sempre quer fugir a essa
presença informe do desconhecido.
Pergunta o que é; treme, curva-se, ignora; às vezes quer ir
lá.
Aonde?
Lá.
Lá? O que é? Que há lá?
Essa curiosidade é evidentemente a das coisas defesas, porque para
aquele lado todas as pontes à roda do homem estão cortadas.
Mas o desejo atrai, porque é golfão. Onde não vai o
pé, vai o olhar, onde o olhar pára, pode continuar o espírito.
Não há homem que não tente, por mais fraco e insuficiente
que seja. O homem, segundo a sua natureza, investiga ou espera diante da
noite. Para uns é rechaçamento, para outros é uma dilatação.
O espetáculo é sombrio. Mescla-se a ele o indefinível.
Vai a noite serena? É um fundo de sombra. Vai tempestuosa? É
um fundo de fumaça. O ilimitado recusa-se e oferece-se ao mesmo tempo,
fechado à experiência, aberto à conjetura. Infinitas
picadas de luz tornam mais negra a obscuridade sem fundo. Carbúnculos,
cintilações, astros. Presenças verificadas no Ignorado;
tremendos reptos para ir tocar esses clarões. São estacas
da criação no absoluto; são marcos de distância
lá onde já não há distância; é
uma espécie de numeração impossível, e toda
via real, do canal das profundezas. Um ponto microscópico que fulge,
depois outro, mais outro, mais outro; é o imperceptível, é
o enorme. Essa luz é um foco, esse foco é uma estrela, essa
estrela é um sol, esse sol é um universo, esse universo é
nada. Todo número é zero diante do infinito.
Esses universos que nada são, existem. Verificando-os, sente-se a
diferença que vai entre ser nada e não ser.
O inacessível ligado ao inexplicável, eis o céu.
Dessa contemplação solta-se um fenômeno sublime: o crescimento
da alma pelo assombro.
O medo sagrado é próprio do homem; a besta ignora esse medo.
A inteligência acha nesse terror augusto o seu eclipse e a sua prova.
A sombra é uma: vem daí o seu horror. É, ao mesmo tempo,
complexa: vem daí o terror. A sua unidade pesa no nosso espírito
e saca-lhe a vontade de resistir.
A complexidade faz com que se olhe para todos os lados; parece que se devem
recear assaltos súbitos. O homem rende-se e defende-se. Fica em presença
de Tudo, daí vem a submissão e de Muitos, daí vem a
desconfiança. A unidade da sombra contém um múltiplo.
Múltiplo misterioso, visível na matéria, sensível
no pensamento. Faz silêncio, razão de mais para espreitar.
A noite – já o disse algures quem escreve estas linhas –
é o estado próprio, normal da criação especial
de que fazemos parte. O dia, breve na duração como no espaço,
é apenas uma proximidade de estrela.
O prodígio noturno universal não se realiza sem atritos, e
os atritos de uma tal máquina são as contusões da vida.
Os atritos da máquina, é o que chamamos o Mal. Sentimos nessa
obscuridade o mal, desmentido latente da ordem divina, blasfêmia implícita
do fato rebelde ao ideal. O mal acrescenta uma teratologia de mil cabeças
ao vasto conjunto cósmico. O mal está presente em tudo para
protestar. É furacão e atormenta a marcha de um navio, é
caos e entrava o desabrochar do mundo. O Bem tem a unidade, o Mal tem a
ubiqüidade. O mal desconcerta a vida, que é uma lógica.
Faz devorar a mosca pelo pássaro, e o planeta pelo cometa. O mal
é um borrão na natureza.
A obscuridade noturna peja-se de uma vertigem. Quem a aprofunda, submerge-se
e debate-se. Não há fadiga comparável e esse exame
de trevas. É o estudo de um apagamento.
Não há lugar definitivo para pousar o espírito. Pontos
de partida sem ponto de chegada. O cruzamento das soluções
contraditórias, todos os ramos da dúvida a um tempo, a ramificação
dos fenômenos esfoliando-se sem limite sob uma impulsão indefinida,
mistura de todas as leis, uma promiscuidade insondável que faz com
que a mineralização vegete, com que a vegetação
viva, com que o pensamento pese, com que o amor irradie e a gravitação
ame; a imensa frente de ataque de todas as questões desenvolvendo-se
na obscuridade sem limites; o entrevisto esboçando o ignorado; a
simultaneidade cósmica em plena aparição, não
para o olhar, mas para a inteligência, no espaço indistinto;
o invisível tornado visão. É a sombra. O homem está
embaixo. Não conhece os pormenores, mas suporta, em qualidade proporcionada
ao seu espírito, o peso monstruoso do conjunto. Esta obsessão
impelia os pastores caldeus à astronomia. Saem dos poros da criação
revelações involuntárias; faz-se por si mesma uma transudação
de ciência e invade o ignorante. Debaixo dessa impregnação
misteriosa torna-se o solitário, muitas vezes sem ter consciência,
um filósofo natural.
A obscuridade é indivisível. É habitada. Habitada sem
deslocação pelo absurdo; habitada também com deslocação.
Move-se ali dentro alguma coisa, o que é para assustar. Uma formação
sagrada desenvolve ali as suas fases. Premeditações, potências,
destinos intencionais laboram aí em comum uma obra desmedida. Vida
terrível e horrível é o que existe ali dentro. Há
vastas evoluções dos astros, a família estelar, a família
planetária, o pólen zodiacal, o Quid divinum das correntes,
dos eflúvios, das polarizações e das alterações;
há o amplexo e o antagonismo, um magnífico fluxo e refluxo
da antítese universal, o imponderável em liberdade no meio
dos centros; há a seiva nos globos, a luz fora dos globos, o átomo
errante, o germe esparso, curvas de fecundação, encontros
de ajuntamento e de combate, profusões inauditas, distâncias
que parecem sonhos, circulações vertiginosas, mergulhos de
mundos no incalculável, prodígios perseguindo-se nas trevas,
um maquinismo definitivo, sopro de esferas em fuga, rodas que se sente andarem,
existe e esconde-se; é o inexpugnável fora de alcance. Fica-se
convencido até à opressão. Tem-se em si uma evidência
negra. Nada se pode agarrar. Esmaga-nos o impalpável.
Por toda a parte o incompreensível; em parte alguma o inteligível.
E a tudo isto acrescentai a terrível questão: esta Imanência
é um Ser?
Está-se debaixo da sombra. Olha-se. Escuta-se.
Entretanto a terra sombria caminha e rola, as flores têm consciência
desse movimento enorme; a silena abre-se às 11 horas da noite e o
hemerocale às 5 horas da manhã. Impressível regularidade.
Em outras profundidades a gota de água faz-se mundo, o infusório
pulula, a fecundidade gigante sai do animálculo, o imperceptível
ostenta a sua grandeza, o sentido inverso da imensidade manifesta-se; uma
diatoméia produz em uma hora 1 milhar e 300 milhões de diatoméias.
Que proposição de todos os enigmas ao mesmo tempo!
Está aí o irredutível.
Constrange-se-nos à fé. Crer por força, eis o resultado.
Mas para estar tranqüilo não basta ter fé. A fé
tem uma estranha necessidade de forma. Daí vêm as religiões.
Nada é tão opressivo como uma crença sem delineamento.
Qualquer que seja o pensamento e a vontade, qualquer que seja a resistência
interior, olhar a sombra não é olhar, é contemplar.
Que fazer desses fenômenos? Como mover-se debaixo de sua convergência?
É impossível decompor esta pressão. Que devaneio se
deve ajuntar a todos esses confinantes misteriosos? Quantas revelações
abstrusas, simultâneas, obscurecendo-se em sua própria multidão,
espécie de balbuciar do verbo! A sombra é um silêncio;
mas esse silêncio diz tudo. Surge majestosamente um resultado: Deus.
Deus é a noção do incompreensível. Essa noção
está no homem. Os silogismos, as querelas, as negações,
os sistemas, as religiões passam por cima sem diminuí-la.
A sombra inteira afirma aquela noção. Mas turva-se tudo o
mais. Imanência formidável. A inexprimível harmonia
das forças manifesta-se pelo equilíbrio dessa obscuridade.
O universo pende; nada tomba. O deslocamento incessante e desmedido opera-se
sem acidente e sem fratura. O homem participa desse movimento de translação
e à quantidade de oscilação que suporta que suporta
chama ele destino. Onde começa o destino? Onde acaba a natureza?
Que diferença há entre um acontecimento e uma estação,
entre um pesar e uma chuva, entre uma virtude e uma estrela? Uma hora não
é uma onda? Continua o movimento da roda, sem responder ao homem,
em sua revolução impassível. O céu estrelado
é uma visão de rodas, de pêndulas e de contrapesos.
É a contemplação suprema forrada de suprema meditação.
É toda a realidade e mais a abstração. Nada além
daí. O homem sente-se preso. Fica à discrição
da sombra. Não há evasão possível. Vê-se
ele naquele composto de rodas, é parte integrante de um Todo ignorado,
sente o desconhecido que está fora dele. Isto é o anuncio
sublime da morte. Que angústia e, ao mesmo tempo, que fascinação!
Aderir ao infinito e por essa aderência atribuir-se uma imortalidade
necessária, quem sabe? Uma eternidade possível sentir na prodigiosa
vaga desse silêncio universal e obstinação insubmersível
do eu! Contemplar os astros e dizer: “Sou uma alma como vós!”
Contemplar a obscuridade e dizer: “Sou um abismo como tu”.
Essas enormidades são a noite.
Tudo isso aumentado, pela solidão, pesava em Gilliatt.
Compreendia-o ele? Não. Sentia-o? Sim.
Gilliatt era um grande espírito turvado e um grande coração
selvagem.